Paulo Miguez
A questão da cultura tem vindo a ocupar lugar de destaque na agenda contemporânea, num movimento que parece confirmar a idéia de que será este novo século o século da cultura, como sugerido por André Malraux. E são muitos os sinais nesta direção. Na academia, a cultura ultrapassou os limites das ciências sociais e apresenta-se, crescentemente, como objeto de muitas outras disciplinas. Fora do universo estritamente acadêmico, não é menos forte sua inscrição. Nas agendas nacionais, aparece em força a questão das políticas culturais, nos foros internacionais, a diversidade cultural mobiliza governos e agências multilaterais.
Tal significativa presença, contudo, não se restringe exclusivamente às temáticas, digamos, estritamente culturais. Ao contrário, com seu caráter transversal, a cultura tem presença garantida em vários campos da vida social. Tornou-se, assim, nas palavras de George Yúdice, um “recurso” que é permanentemente acionado e em várias direções. Cultura como um recurso para promover a inclusão social, para requalificar centros urbanos, para estimular o crescimento econômico, etc. Recurso, enfim, para ativar políticas que se ocupam do desenvolvimento.
Mas o que quer, e o que pode, significar a relação entre cultura e desenvolvimento?
Certamente de pouco interessa a esta relação, ao que ele encerra em termos de boas e novas promessas, uma compreensão balizada pelas teorias ancoradas no reducionismo economicista que marcou, ainda marca, grande parte das políticas de desenvolvimento. Aqui, convenhamos, a sedução não é pequena. Afinal, estamos diante de um setor econômico, o da produção cultural, que dá forma a um mercado de bens e serviços que se caracteriza por sua escala global, pela presença de gigantescos conglomerados de produção e distribuição de conteúdos culturais, por seu extremo poder de fogo, tanto econômico quanto político-ideológico, e por números que traduzem uma geração de riqueza material absolutamente impressionante.
Pois bem, se for este o caminho a trilhar o que se verá é tão somente uma mudança do paradigma econômico-produtivo que dá sustentação ao desenvolvimento. Sai de cena a produção industrial clássica, com suas chaminés, entra, em seu lugar, a produção de bens e serviços simbólicos.
É evidente que as imensas possibilidades econômicas que decorrem da cultura não podem ser esquecidas pelas políticas de desenvolvimento. Com efeito, não há como nem porque desprezar a importância econômica de um setor que representa, respectivamente, 6% e 8,2% do Produto Nacional Bruto dos EUA e da Grã-Bretanha; que conseguiu estabelecer potentes mercados internos a exemplo da Índia e da Nigéria, com suas indústrias cinematográficas, e do Brasil, com sua produção televisiva; que opera, como no caso da música jamaicana e colombiana, significativos nichos globais de mercado; e que, segundo as estimativas do Banco Mundial, contribui com aproximadamente 7% para a formação do PIB mundial e deverá crescer em média 10% nos próximos anos.
Todavia, o potencial de geração de riquezas e de empregos representado pela cultura não pode ser compreendido e operacionalizado por políticas dedicadas ao desenvolvimento sem que se tenha como referencia uma visão da cultura enquanto dimensão constitutiva da vida social, uma usina geradora de riquezas simbólicas. Ou seja, não se pode, tão somente, buscar o desenvolvimento tendo como eixo principal o crescimento econômico, neste caso, assentado no estímulo às atividades produtivas ligadas à cultura. Muito pelo contrário, uma relação entre cultura e desenvolvimento que pretenda avançar na direção de uma nova compreensão do que deva ser desenvolvimento torna imperativa a necessidade da criação de condições propícias ao aumento da diversidade das manifestações culturais e a promoção da inclusão, simultaneamente cultural, social e econômica, de novos e múltiplos agentes criadores. Ou seja, é o caso, aqui, da firme recusa da adoção de uma visão meramente instrumental da relação entre cultura e desenvolvimento, cuja tendência é reforçar e proteger os interesses dos agentes culturais já estabelecidos (os grandes conglomerados das indústrias culturais), em favor do acionamento das oportunidades que se abrem quanto à expansão do espaço de criação e de circulação de manifestações culturais, com evidentes ganhos econômicos mas, também, com ganhos propriamente culturais, com a produção e a circulação ampliadas de repertórios simbólicos capazes de oferecer alternativas às produções simbólicas dominantes, incluindo-se aí diferentes modelos de desenvolvimento.
Alguns esforços na direção de uma relação mais substantiva e menos instrumental entre cultura e desenvolvimento merecem, aqui, ser anotados. A UNESCO, já em 1982, no México, na Conferência Mundial sobre Políticas Culturais – MONDIACULT, chamou a atenção para o fato de ser a cultura uma base indispensável para o desenvolvimento sustentável. Mas recentemente, com a aprovação da Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, cuja premissa básica é a compreensão da diversidade cultural como patrimônio comum da humanidade, esta agência do Sistema Nações Unidas reforçou o papel abrangente que deve jogar a cultura nos processos de desenvolvimento ao destacar a dupla determinação, simbólica e econômica, dos bens culturais. O PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, na edição de 2004 do seu Relatório do Desenvolvimento Humano deu grande impulso a esta discussão ao adotar como tema a “Liberdade Cultural num Mundo Diversificado”. Até mesmo as agências internacionais dedicadas à questão do desenvolvimento, instituições historicamente distante da questão cultural, a exemplo do poderoso Banco Mundial e do BID- Banco Interamericano de Desenvolvimento, têm vindo a ocupar-se desta relação – o BID criou uma fundação dedicada às questões que articulam a cultura ao desenvolvimento, a Inter-American Culture and Development Foundation, e o Banco Mundial, desde finais da década de 1990 vem avançando na compreensão da cultura como elemento catalisador do desenvolvimento.
Mas, não nos enganemos, muito caminho ainda há por percorrer, tanto do ponto de vista prático quanto conceitual, até que possamos ver como dominante a compreensão que encontramos admiravelmente expressa por Celso Furtado na sua afirmação de que uma “política de desenvolvimento deve ser posta a serviço do processo de enriquecimento cultural” das sociedades.
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